Fiz esse exercício, há uns três anos, para a construção da dramaturgia do espetáculo “Oito”, o exercício foi proposto por Juliana Jardim, diretora da peça juntamente com Antonio Januzelli, chame-se escrita total (mas deve ter outros nomes), o tema foi a infância. Durante alguns minutos escreve-se sem parar sobre determinado assunto sem se preocupar com pontuações, ortografia ou concordâncias, somente com o tema proposto, inclusive os assuntos podem mudar de uma hora pra outra sem aviso prévio, quem manda na “caneta” é o pensamento que toma a frente, acaba sendo um relato de sensações.
Resolvi aplicá-lo, como resgate de memória, com alguns alunos para falar de Poética Pessoal, e saíram belos textos, o próximo passo é transformar esse resgate de memória em arte, sendo através da poesia, das artes visuais, ou qualquer outra manifestação artística. Recomendo aos colegas educadores da área de Artes experimentarem o exercício com seus alunos. E vamos a minha infância então!!
.
.
De manhã, a espera de o meu avô sair para os seus afazeres diários. Melhor hora do dia, das férias na casa da vó Nina. Meu avô sai, eu, minhas irmãs e a Lú corremos pro quarto da vó Nina e escalamos a camona. Minha vó linda, como sempre, as vezes dormindo, mas sempre sorrindo, sempre acolhendo. Adorava ouvir suas histórias, de santos, romances, sereias. No quarto dela tinha o Buda, um crucifixo gigante pendurado na parede, no altar Cosme e Damião. Minha vó foi a pessoa mais generosa e maravilhosa que conheci na vida. Lembro-me que ficávamos horas naquela camona, nós a pintávamos, a penteávamos. Eu gostava de gritar no ouvido dela, ela era surda. Meu pai dizia que era só falar de frente pra ela que ela lia os nossos lábios. Mas eu não achava justo. De domingo todo mundo ia almoçar no casarão, macarronada, falavam alto, faziam muito barulho. E por que eu não podia gritar no ouvido da minha própria vó? Eu gritava. E ela sorria, sempre. E dançava, cantava. Quando alguém adoecia ela benzia, sempre vinha gente da vila pra ela benzer. Rezava muito também. Acho que se hoje acredito em Deus, foi por sentir a fé de minha vó. Lembro-me de um dia que estávamos no casarão, chovia muito, relâmpagos e trovões me faziam tremer de medo, olhei pra minha vó, ela estava sentada na cozinha, sorrindo, e eu pensei, “nessas horas até queria ser surda também, deve ser bom, minha vó tá até rindo, nem sente medo de trovão”. Gostávamos de pentear seus lisos e longos cabelos brancos. Por falar em cabelo, minha irmã Nina uma vez pegou a Barbie da Kika, minha outra irmã, e disse que ia mudar o visual dela. A Nina adorava brincar de cabeleireira, e cortou o cabelo da Barbie chanel, além de arrepiar a franja. Já comigo ela não cortou o cabelo da minha boneca, cortou o meu mesmo. Minha mãe chegou e levou a gente no cabeleireiro de verdade, mandou que cortasse o cabelo das três “a lá homem”, coitada da Kika que entrou de gaiato no navio. Mas voltando a minha vó, eu gostava quando ela fazia o almoço, pois deixava eu mexer a panela do arroz. E o sonho da vó Nina, depois que ela morreu não teve mais sonho, ela falava que não tinha segredo, que era fácil, mas tinha sim, aquele sonho tinha gosto de sonho de vó. Já meu avô era outra coisa, o carinho dele era beliscão. A única pessoa que enfrentava ele era a Maria, empregada da casa desde que minha mãe era pequena, era uma negra, gorda, bunda arrebitada, peito grande e careca no cocuruto da cabeça. Ela defendia minha vó, defendia a gente e meu avô não ousava enfrentar ela não. No fundo era ela quem mandava na casa. Fazia uma batata frita e um mingau especiais. Mas voltando ao meu avô, militar reformado, combateu na 2ª guerra na Itália, acho que quando ele ficou doente passei a enxergar mais humanidade naquele ser amargo, bruto, áspero. Mas a doença corroeu ele muito. Acho que todo mundo. Lembro das etapas, quando eu ia visitá-lo. No começo ele ficou violento, não gostava que homem entrasse na casa, batia, xingava. Depois ele começou a defecar pela casa, era nojento, mas não tinha como prendê-lo, claro, então restava suportar o cheiro, que por mais que se limpasse, algum resíduo sempre ficava pra trás. Depois veio a fase que ele foi parando de andar, de falar, até de respirar. Seu corpo foi ficando duro, as feridas não cicatrizavam, mas o carinho da minha tia e da minha prima era incansável, elas limpavam, cuidavam, faziam curativos, conversavam com ele. Lembro o dia de sua morte. Estávamos na sala, e minha tia, que até então não se conformava que ele precisava morrer, foi até ele e falou chorando algo assim “Vai pai, pode ir, a gente vai ficar bem.” Passou uns minutos e ele morreu. Não me lembro do rosto do meu avô morto, mas lembro do meu tio tentando desdobrar o joelho dele, sem sucesso, tiveram que fazer uma montanha de flores no caixão, pra disfarçar o joelho que não desdobrava. Já o rosto da minha vó, que morreu bem antes, eu lembro perfeitamente, estava tranqüilo, ela estava linda e sorrindo como sempre.
Resolvi aplicá-lo, como resgate de memória, com alguns alunos para falar de Poética Pessoal, e saíram belos textos, o próximo passo é transformar esse resgate de memória em arte, sendo através da poesia, das artes visuais, ou qualquer outra manifestação artística. Recomendo aos colegas educadores da área de Artes experimentarem o exercício com seus alunos. E vamos a minha infância então!!
.
.
De manhã, a espera de o meu avô sair para os seus afazeres diários. Melhor hora do dia, das férias na casa da vó Nina. Meu avô sai, eu, minhas irmãs e a Lú corremos pro quarto da vó Nina e escalamos a camona. Minha vó linda, como sempre, as vezes dormindo, mas sempre sorrindo, sempre acolhendo. Adorava ouvir suas histórias, de santos, romances, sereias. No quarto dela tinha o Buda, um crucifixo gigante pendurado na parede, no altar Cosme e Damião. Minha vó foi a pessoa mais generosa e maravilhosa que conheci na vida. Lembro-me que ficávamos horas naquela camona, nós a pintávamos, a penteávamos. Eu gostava de gritar no ouvido dela, ela era surda. Meu pai dizia que era só falar de frente pra ela que ela lia os nossos lábios. Mas eu não achava justo. De domingo todo mundo ia almoçar no casarão, macarronada, falavam alto, faziam muito barulho. E por que eu não podia gritar no ouvido da minha própria vó? Eu gritava. E ela sorria, sempre. E dançava, cantava. Quando alguém adoecia ela benzia, sempre vinha gente da vila pra ela benzer. Rezava muito também. Acho que se hoje acredito em Deus, foi por sentir a fé de minha vó. Lembro-me de um dia que estávamos no casarão, chovia muito, relâmpagos e trovões me faziam tremer de medo, olhei pra minha vó, ela estava sentada na cozinha, sorrindo, e eu pensei, “nessas horas até queria ser surda também, deve ser bom, minha vó tá até rindo, nem sente medo de trovão”. Gostávamos de pentear seus lisos e longos cabelos brancos. Por falar em cabelo, minha irmã Nina uma vez pegou a Barbie da Kika, minha outra irmã, e disse que ia mudar o visual dela. A Nina adorava brincar de cabeleireira, e cortou o cabelo da Barbie chanel, além de arrepiar a franja. Já comigo ela não cortou o cabelo da minha boneca, cortou o meu mesmo. Minha mãe chegou e levou a gente no cabeleireiro de verdade, mandou que cortasse o cabelo das três “a lá homem”, coitada da Kika que entrou de gaiato no navio. Mas voltando a minha vó, eu gostava quando ela fazia o almoço, pois deixava eu mexer a panela do arroz. E o sonho da vó Nina, depois que ela morreu não teve mais sonho, ela falava que não tinha segredo, que era fácil, mas tinha sim, aquele sonho tinha gosto de sonho de vó. Já meu avô era outra coisa, o carinho dele era beliscão. A única pessoa que enfrentava ele era a Maria, empregada da casa desde que minha mãe era pequena, era uma negra, gorda, bunda arrebitada, peito grande e careca no cocuruto da cabeça. Ela defendia minha vó, defendia a gente e meu avô não ousava enfrentar ela não. No fundo era ela quem mandava na casa. Fazia uma batata frita e um mingau especiais. Mas voltando ao meu avô, militar reformado, combateu na 2ª guerra na Itália, acho que quando ele ficou doente passei a enxergar mais humanidade naquele ser amargo, bruto, áspero. Mas a doença corroeu ele muito. Acho que todo mundo. Lembro das etapas, quando eu ia visitá-lo. No começo ele ficou violento, não gostava que homem entrasse na casa, batia, xingava. Depois ele começou a defecar pela casa, era nojento, mas não tinha como prendê-lo, claro, então restava suportar o cheiro, que por mais que se limpasse, algum resíduo sempre ficava pra trás. Depois veio a fase que ele foi parando de andar, de falar, até de respirar. Seu corpo foi ficando duro, as feridas não cicatrizavam, mas o carinho da minha tia e da minha prima era incansável, elas limpavam, cuidavam, faziam curativos, conversavam com ele. Lembro o dia de sua morte. Estávamos na sala, e minha tia, que até então não se conformava que ele precisava morrer, foi até ele e falou chorando algo assim “Vai pai, pode ir, a gente vai ficar bem.” Passou uns minutos e ele morreu. Não me lembro do rosto do meu avô morto, mas lembro do meu tio tentando desdobrar o joelho dele, sem sucesso, tiveram que fazer uma montanha de flores no caixão, pra disfarçar o joelho que não desdobrava. Já o rosto da minha vó, que morreu bem antes, eu lembro perfeitamente, estava tranqüilo, ela estava linda e sorrindo como sempre.