quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Do amor e outros demônios



"Sierva Maria estava sentada defronte de uma janela que dava para um campo coberto de neve, arrancando e comendo uma a uma as uvas de um cacho que tinha no colo. Cada uva arrancada tornava a brotar no cacho. No sonho, era evidente que a menina estava há muitos anos defronte daquela janela infinita tentando acabar o cacho, e que não tinha pressa, por saber que na última uva estava a morte.''
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Terminei de ler há alguns dias o livro "Do amor e outros demônios" de Gabriel Garcia Márquez, e o tempo todo fiquei com a sensação de não pertencer. O autor é admirável, aborda temas pertubadores e contradiórios, como racismo, intolerância religiosa, de maneira sensível e sem culpas.
Como assunto recorrente de suas obras, o amor aparece em muitas formas, mas a principalmente na de um amor muito próximo daqueles dos contos-de-fadas, contudo talvez sem o idealismo deles.
Os demônios vão muito além da figura arquetípica, referem-se principalmente aos nossos demônios internos, nossos vãos obscuros e asquerosos.
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"No dia 29 de maio, sem ânimo para mais nada, tornou a sonhar com a janela dando para um campo nevado, onde Cayetano Delaura não estava nem voltava nunca. Tinha no colo um cacho de uvas douradas que tornavam a brotar logo que as comia. Mas dessa vez não as arrancava uma a uma, e sim de duas em suas, mal respirando na ânsia de acabar com o cacho até a última uva. A guardiã que entrou com a incumbência de prepará-la para a última sessão de exorcismo a encontrou morta de amor na cama, os olhos fulgurantes e pele de recém-nascida. Os fios de cabelo brotavam-lhe como borbulhas no crânio raspado, e era possível vê-los crescer."
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Especialmente hoje estou me sentindo mais estrangeira que de costume, uma Sierva Maria de Todos los Angeles, vivendo no liame de dois mundos, carregando de forma ambivalente os pares de opostos: o bem e o mal. Se o amor não me matar, meus demônios cuidarão disso...

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